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Moradores têm celulares vigiados e horários controlados em áreas dominadas por facções

O controle do tráfico sobre o cotidiano das comunidades em Salvador vai além da barreira física. É através das redes sociais que criminosos monitoram o dia a dia de moradores, que são obrigados a mostrar as conversas e mensagens trocadas em aplicativos como o WhatsApp. Desse modo, eles vigiam tudo: o que é comentado, curtido, postado e compartilhado na internet. “Eu não saio mais com o celular na mão. Tenho medo de eles invocarem com alguma coisa e me matarem”, disse uma senhora, dias antes de deixar o bairro de Vila Verde. 

A comunidade fica entre o final da Estrada Velha do Aeroporto e os fundos dos bairros Mussurunga II e Alphaville II. É nessa região cercada de mata que o Comando Vermelho (CV) fiscaliza o dia a dia de moradores, alterando um dos fundamentos do Estado democrático – o direito de ir e vir, espalhando “soldados” em praças e nas principais vias de acesso à comunidade. Se desconfiam de qualquer morador, param e querem ver se informações locais chegam de alguma forma à polícia ou à facção rival. 

“Certa vez, caminhando, vi uma flor bonita e cheguei a pegar o celular, para fazer uma foto. Foi quando uma amiga me lembrou que não devia, dizendo: ‘O que não é visto, não é lembrado’. Guardei o aparelho. Você acha que está fazendo uma coisa normal, mas infelizmente, hoje em dia, não é mais assim”, declarou a fonte, que, no mês passado, saiu de Vila Verde. “ Eles temem ser achados e a gente de morrer, por isso larguei tudo”, disse ela na semana passada, quando já arrumava as coisas para ir embora.

Entre as medidas “corretivas” do CV aplicadas à comunidade está o “tribunal do crime”, no qual a morte é decretada e executada na grande maioria das vezes. De acordo com o relato de quem ainda vive lá, duas mulheres foram assassinadas na região há cerca de seis meses, depois que integrantes do CV acessaram os celulares delas. “Há três meses, uma cidadã, que namorou um homem que era envolvido e que foi morto em São Cristóvão, também foi assassinada. Eu não sei o que tinha no aparelho dela, mas sei que coisa boa não era, porque eles executaram ela na porta de casa”, contou um morador antigo. A vítima deixou dois filhos pequenos. 

Ele disse que uma ambulante também foi sentenciada à morte há cerca de seis meses. “Viram no celular dela alguma coisa que não gostaram. Acredito que foi uma conversa com alguém e por isso acharam que estaria caguetando. Ele foi morta chegando num ponto de ônibus, onde trabalhava, na Estrada Velha do Aeroporto”, contou. 

Uma moradora antiga da região disse que vem tentando conviver com a rotina de ver amigos, conhecidos e familiares serem expulsos de suas residências, revistados e recolhidos. “Na minha rua, umas dez famílias abandonaram as casas com medo deles”, disse ela, que, apesar da residência isolada, não saiu ainda porque não tem para onde ir com a mulher, filhos, noras e netos.

Moradores estão apavorados em Vila Verde
Moradores estão apavorados em Vila Verde. Crédito: Marina Silva.

O CV, facção carioca que se estabeleceu na Bahia em 2020, vem alterando o direito de ir e vir das pessoas há, pelo menos, um ano. “São meninos novos e o sotaque não é daqui, de Salvador. Lembra muito o do Rio [de Janeiro]. Eles olham e a gente fica assustada porque não nos conhecem. São jovens que você olha e vê que não são de periferia daqui, porque o estereótipo não se encaixa, têm a pele mais clara e cabelos lisos. Eles passam despercebidos pela polícia, que tem o hábito de abordar pessoas pretas em motos. Se fosse um parente meu chegando do trabalho, seria logo cercado por policiais. Eu só percebi que eles eram do ‘movimento’, quando notei as armas na cintura”, contou uma outra senhora. 

Tancredo Neves

A situação não é diferente em outras áreas vigiadas 24h por dia pelo tráfico. No bairro de Tancredo Neves, moradores ouvidos pela reportagem disseram que, há cerca de um mês, um rapaz foi brutalmente assassinado na localidade do Canal. “Viram que ele falava muito ao celular justamente quando a polícia começou a fazer várias operações aqui. Então, invadiram a casa, levaram ele para uma mata e lá fizeram o tal do julgamento. Mataram o rapaz a pauladas. Só depois que a gente ficou sabendo que a vítima era supervisor em operadora de telefonia e por isso estava o tempo todo mexendo no telefone”, contou uma dona de casa, que reside no Canal, área de atuação do Bonde do Maluco (BDM).

É em Tancredo Neves que a violência eclodiu nos últimos meses. No primeiro semestre, o bairro foi apontado como o mais violento de Salvador, com 30 tiroteios, 18 mortos e 12 feridos, segundo do Instituto Fogo Cruzado. São registros que colocam o bairro bem à frente dos outros no ranking, como Fazenda Grande do Retiro (2° colocado), com 18 tiroteios, 17 mortos e nove feridos, e Pernambués (3° colocado), com 18 tiroteios, sete mortos e seis feridos. Para se ter ideia do avanço da violência por lá, no segundo semestre de 2022, Tancredo não estava nem entre os cinco bairros mais violentos da capital. Foram 6 tiroteios, três mortos e dois feridos ao longo do período.

Os dados do primeiro semestre são resultado de uma série de picos de violência registrados no bairro, após virar palco de uma guerra entre o CV e o BDM. Nesse período, foram sete casos de moradores feitos reféns por criminosos durante fuga da polícia. 

Alto das Pombas

No Alto das Pombas, onde CV e BDM disputam o tráfico, uma técnica de enfermagem contou o seu drama. “Eu trabalho em quatro hospitais e já perdi nove plantões esse mês porque não tive como sair de casa. Eles ficam no controle e na vigilância o tempo todo em cima. Um dia eu estava saindo para trabalhar, pegaram meu celular e só me liberaram depois que viram a mensagem de minha chefe no WhatsApp me ameaçando de demissão se eu não chegasse a tempo”, relatou. 

Situação é de insegurança em Alto das Pombas
Situação é de insegurança no Alto das Pombas. Crédito: Marina Silva

Depois dos sucessivos episódios, ela adotou uma medida para garantir a segurança da família. “Eles [traficantes] ficam de olho em tudo. Minha filha mesmo está indo para escola sem celular para evitar qualquer tipo de situação”, declarou ela. No início do mês, o bairro passou por momentos de tensão. Enquanto agentes de segurança ainda procuravam criminosos que aterrorizaram a localidade e a região vizinha do Calabar, famílias buscaram refúgio em casas de conhecidos depois de juntarem pertences às pressas em malas de mão e correrem para salvar crianças e animais de estimação da zona de confronto. Pelo menos 10 pessoas morreram em confronto com a PM, entre os dias 4 e 5.

Valéria

No Conjunto Lagoa da Paixão, em Nova Brasília de Valéria, o controle paralelo é feito pela Katiara. “Eles sabem de tudo: quem chega, quem sai. Nós não podemos trazer ninguém de fora, porque já ficam de olho, achando que é problema. Uma vez, um rapaz apanhou tanto porque tirava foto na mata. Era a primeira vez que tinha vindo aqui. Era evangélico. Só não morreu porque um pastor intercedeu. E ninguém está aguentando mais. É preciso que a polícia olhe mais para nós, porque eles [traficantes] tomaram conta”, relatou um morador.

Policiais vazem varreduras em Valéria
Policiais vazem varreduras em Valéria. Crédito: Alberto Maraux/SSP

Nova Brasília de Valéria faz parte do bairro de Valéria, onde, desde o último dia 15, forças de segurança vêm realizando operações contra o tráfico. Equipes das polícias Civil, Militar e Federal, inclusive com uso de carros blindados, caçam integrantes das facções Katiara e BDM, que brigam no bairro. Nessa guerra, um policial federal morreu e outros dois agentes ficaram feridos. Ainda durante os confrontos, ao menos 14 traficantes foram mortos.

Tirania

Segundo o especialista em segurança pública, o coronel Antônio Jorge, coordenador do curso de Direito do Centro Universitário Estácio FIB da Bahia, a tática do tráfico em monitorar os moradores, dentro de um processo democrático, é uma “tirania”. “Não é uma tirania política convencional, mas é [tirania], porque esses donos das bocas se comportam como verdadeiros tiranos dentro daquela localidade”, afirma. 

Antônio Jorge aponta a ausência do Estado como o maior causador do problema. “O Estado tem que estar presente. Não só através da polícia. A polícia é necessária, sim, os confrontos são inevitáveis. Mas não pode ser essa política de você entrar, confrontar, e o Estado não permanecer. Você ocupar o território que está sob o domínio do inimigo e manter essa ocupação para evitar que o inimigo retome. Nós não estamos numa guerra convencional, mas o que vivemos hoje é uma guerra”, declarou o especialista. 

O CORREIO perguntou se a Polícia Civil apura o fato de traficantes estarem monitorando os moradores em comunidades conflagradas e o que vem fazendo para impedir tais práticas criminosas. Questionou ainda se investigava as mortes das mulheres relatadas por moradores em Vila Verde. Em nota, a PC informou apenas que “visto que o lapso temporal apontado é de seis meses, precisamos ao menos que seja informado que vítimas foram essas, a fim de que possamos apurar como estão as investigações dos casos”. 

A Secretaria de Segurança Pública (SSP/BA) e a Polícia Militar (PM/BA) também foram procuradas, mas não responderam até esta publicação. O espaço permanece aberto.

Fonte: Correio.

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